Terapia Virtual

by - março 23, 2020


@Freud (fotografia digital)



Terapia virtual

Um dos milhares de casos decorrentes da nossa tão sonhada evolução. Paulo ou Paulinho  ̶  como era mais conhecido  ̶   era um garotinho de 7 anos, filho de um psicólogo e uma professora renomados. Como o renome exige tempo, tempo era justamente o que não tinham para Paulinho.
- Pai, me ensina a jogar futebol?
- Ôh, meu filho... papai tá atrasado para chegar ao consultório, hoje não dá, tá? Mas vou deixar o meu tablet para você brincar, ok? Tchau, campeão!
- Tá bom...  ̶  respondeu com voz triste.




Ouviu, então, a voz de sua mãe em casa. “Ah, ela vai brincar comigo! Estamos de férias, né?” pensou e se apressou para o seu lado:
- Mamãe, brinca comigo?
A mãe o pegou carinhosamente e o sentou sobre seu colo. Olhando dentro daqueles olhinhos ansiosos, disse:
- Meu amor, hoje tenho algumas aulas e ficarei fora o dia todo, tá bom?
- Mas você não estava de férias, como eu?
- Uma professora que se preze nunca tira férias, filho! Você vai ficar com a babá, só que, para te compensar, farei o seguinte: deixarei o meu smartphone com você, ok? Pode brincar com ele à vontade! Tchau, meu anjo!
Paulinho ficou confuso, sentiu um vazio no peito que escorreu pelos olhos em forma de lágrimas. Subiu para o seu quarto e ficou quietinho por lá.



Enquanto isso, no consultório, o seu pai atendia, esfuziante, o terceiro paciente do dia:
- Bom dia, meu campeão! Como vai?
- Oi, tio! Mais ou menos...
- Nossa, então vamos passar muito tempo juntos!
O pai de Paulinho era psicólogo infantil, devotado à profissão. Era totalmente encantado pelo universo infantil e atendia muitas crianças por dia.


Quando tocou a campainha da casa, Rafinha recebeu a professora com um enorme sorriso:
- Oi, tia! Que bom que chegou, estou doida para aprender mais hoje.
- Que bom querida! Passaremos muito tempo juntas! Venha cá me dar um abraço!
A mãe de Paulinho dava aulas particulares de Arte para crianças, nas férias. Não suportava ficar parada e longe das crianças. Estudava, com muito afinco, tudo sobre elas e dominava a arte de educá-las.
A babá tocou levemente na porta do quarto e chamou o menino para almoçar. Ele acordou, desceu esfregando os olhos, como se estivesse acordando de um sonho ruim.




- O que você tem, meu pequeno?
- Os meus pais não têm tempo pra mim. Tô ficando triste! Como curo essa tristeza?
- A minha outra patroa estava bem assim, igualzinha a você... mandaram ela fazer terapia.
- O que é terapia?
- Ah, acho que é quando você paga alguém para te escutar... parece que é ... Então, como ela era muito ligada nessas coisas de internet, pegou o computador e marcou uma terapia virtual. Foi tão bom que logo o resto da família também começou a fazer. Eles começaram a se tratar bem, conversar e passar mais tempo uns com os outros.
- É disso que eu preciso! Obrigado!  ̶   deu um beijo estalado na babá e subiu correndo para o quarto.



Pegou o tablet do pai e falou: terapia virtual. O comando de voz logo abriu várias páginas com sites que ofereciam terapia virtual. Um nome lhe chamou a atenção: doutora Lúcia.
Doutora Lúcia oferecia terapia individual e familiar, em pacotes que variavam de acordo com o número de sessões e sua duração. A primeira sessão era gratuita, para conquistar os pacientes. O site era autoexplicativo e, para ser atendido, bastava preencher um formulário com nome do paciente, tipo de terapia e telefone. A secretária, então, ligava para agendar o melhor dia e horário.
- Vamos lá! Nome: Paulo Nogueira; tipo de terapia: familiar; telefone: 99090-9090. Isso! “Operação concluída com sucesso! Em breve retornaremos o contato.”
Em menos de 5 minutos a secretária ligou para o garotinho e ele atendeu, no seu próprio celular:
- Boa tarde! Quem fala é a secretária da doutora Lúcia. Posso falar com o senhor Paulo Nogueira?
- Sim, é ele  ̶  disse, engrossando o tom da voz.
- Tenho horário para uma sessão familiar amanhã, às 19 horas. Posso deixá-la agendada?
- Huhum... sim, pode deixar. A primeira é de grátis, né?
- Isso, senhor. Ok, está agendada a sessão. Certifique-se que a sua conexão com a internet esteja boa, certo?
- Ok.
- Obrigada pelo contato, senhor Paulo. Tenha uma boa tarde.
O garoto pegou o smartphone da mãe e o tablet do pai. Na agenda marcou: “evento importante, casa, amanhã, 19 horas”.



Desceu para a sala de TV e assistiu os seus desenhos favoritos, enquanto os pais não chegavam. Acabou pegando no sono e só acordou com o barulho da porta se abrindo:
- Oi, campeão! Tudo bem? Papai vai subir para tomar banho e já desço para jantarmos, tá? Devolve o tablet para eu ver os meus recados, filho?
- Sim, papai. Aqui está.
- Hum... evento importante, casa, amanhã às 19 horas. Estranho, não me lembro do que se trata, mas, se está aqui. Deve ser uma recepção ou coisa do tipo. Estarei aqui.


O menino deu aquele sorriso com o canto da boca, para ninguém perceber, e pensou: ”Yes, deu certo”!
Em seguida entre sua mãe:
- Oi, anjo! Como foi o dia? Estou exausta, como sempre... Vou até o escritório deixar as minhas coisas e já volto para o jantar, ok? Dá o celular pra mamãe ver os compromissos de amanhã?
- Sim, mamãe. Está aqui.
- Vejamos... evento importante, casa, amanhã às 19 horas. Engraçado, não me recordava disso. O que será que é? Ah, deixa para lá, amanhã estarei aqui.


Mais um sorriso de alegria. O plano tinha dado certo!
A família fazia questão do jantar à mesa, todos os dias. Era o único momento em que estavam juntos. Cada um com seu prato e o seu celular, claro. Nem se deram ao trabalho de comentar a respeito do evento importante de amanhã. Sabiam que suas empregadas cuidariam de tudo, bastaria a sua presença.
No grande dia, Paulino acordou mais tarde. Queria aproveitar mais aquela sensação boa do sonho lindo que teve. Os seus pais já tinham saído. Ele desceu, já para o almoço, e deu um abraço-surpresa na babá:
- Bom dia! Obrigado!
- Oi, meu menino! Que alegria toda é essa, posso saber?
- Nós vamos fazer terapia hoje: eu, mamãe e papai.
- É mesmo! Que coisa boa! Onde?
- Sabe aquela terapia virtual que você me falou? Pois é, vamos fazer terapia pela internet! Já planejei tudinho!
A babá ficou apreensiva, afinal, como seria aquilo? Os pais deles mal ficavam em casa.
- Olha, meu bem, não leve essa história muito a sério. Você é muito pequeno para se preocupar com essas coisas...
- Não, não tô  preocupado. Vai dar certo!
Foi para o quarto, buscou o notebook e deixou tudo preparado na sala. Verificou a conexão e já deixou a página aberta no site. O tempo, pela primeira vez, demorou a passar... Paulinho subiu, tomou um banho demorado e ficou prontinho.
- Já são 19 horas! Eles devem estar aí!
Os seus pais chegaram pontualmente.
- Oi, amor! Ué, engraçado, está tudo quieto... e o evento importante?
- Pois é, não estou entendendo.
- Olha, vocês chegaram mesmo!  ̶ disse o garotinho. O evento importante é a nossa terapia!
- Terapia???




- Sim. Marquei uma sessão de terapia virtual, para nós três. A doutora Lúcia vai atender a gente e ajudar a passar mais tempo uns com os outros, conversar mais... já vai começar, o computador tá conectado. Senta aí, gente!
Os pais o olharam, ternamente, com lágrimas a escorrer pelos cantos dos olhos. Como não tinham percebido tudo aquilo antes? A imagem de doutora Lúcia apareceu na tela. 
Ela cumprimentou a todos. Nesse momento, a energia elétrica foi interrompida. Um carro bateu no poste onde estava o gerador. Levaria horas para consertar o estrago. Paulinho começou a chorar, pois o plano deu errado.



- Não filho, não chore. Sabemos de algo muito interessante para fazer. Passaremos muito tempo juntos...
Os pais acenderam a lareira e trouxeram castiçais e pedacinhos de queijo. Brincaram de fazer sombras em forma de animais na parede, enquanto derretiam o queijo no fogo, a noite toda. Conversaram sobre o trabalho, as crianças que atendiam e como planejavam mudar a sua rotina para ficarem mais tempo juntos. Ouviram as histórias do filho, os seus planos, muito do seu universo. Paulinho esfregou bem os olhos:
- Nossa, parece que estou sonhando! Que sonho bom!
A sessão não aconteceu, porém, de um jeito ou de outro, doutora Lúcia acabou dando um empurrãozinho...







Ilustrações de Paulinho e seus pais foram criadas a partir do aplicativo Bitmoji.








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